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8-junho-2025 Ano 1

Entre médios: o cotidiano dos jovens israelenses e palestinos em meio à guerra

Em meio à ofensiva militar e o avanço da ocupação israelense contra o povo palestino, jovens contam os diferentes dilemas pessoais, sociais, políticos e familiares que enfrentam no seu dia-a-dia. 

Desde 7 de outubro, a vida de Loay Okasha, jovem palestino de 21 anos, mudou radicalmente. “Os dias passaram a andar devagar, como se o tempo tivesse parado num momento de terror. Tudo o que eu conhecia sobre segurança, família e vida se distanciou de mim”, relata. A data marca o início de uma das fases mais dramáticas do conflito entre Israel e Palestina.

Naquele sábado de 2023, o grupo Hamas — que controla a Faixa de Gaza desde 2007 — lançou um ataque surpresa contra o território israelense, matando centenas de pessoas. A reação de Israel foi imediata e, desde então, os combates não cessaram.

Passado pouco mais de um ano, a guerra já deixou mais de 63 mil mortos e cerca de 127 mil feridos, segundo a emissora Al Jazeera. A grande maioria das vítimas — aproximadamente 98% — é palestina. Do lado israelense, 1.139 pessoas morreram e mais de 8.700 ficaram feridas.

A ofensiva também alterou profundamente a vida de Shani Katz, israelense de 23 anos. “Acho que ninguém aqui passou ileso. O que mais me incomodou no último ano foi como tudo ficou polarizado. Parece que as pessoas têm que escolher um lado ou outro, sem espaço para nuances”, afirma.

Se para Shani os impactos mais sentidos são de ordem social e política, para Loay, que vive na Faixa de Gaza, a guerra afeta cada aspecto da vida cotidiana — inclusive seus sonhos e perspectivas de futuro. Entre os jovens palestinos, o caminho já parece traçado desde o nascimento. O conflito não é um episódio pontual, mas uma realidade constante, da qual é preciso tentar sobreviver todos os dias.

Para compreender como o atual cenário repercute na vida da juventude palestina e israelense, a reportagem ouviu quatro jovens que permanecem na região. O objetivo foi investigar de que forma suas rotinas mudaram desde o 7 de outubro de 2023 — e o que se manteve.

Os depoimentos abordam cinco eixos principais: os impactos diretos dos ataques, o acesso à cultura e ao lazer, a situação da educação, as condições de trabalho e o papel da internet. As falas evidenciam os profundos abismos materiais e simbólicos que moldam o cotidiano de quem vive sob a lógica da guerra.

Mais do que conclusões definitivas, os relatos revelam fragmentos de vidas atravessadas por escolhas difíceis, violências cotidianas e percepções muitas vezes inconciliáveis — um retrato complexo de um conflito que se prolonga há décadas e marca de forma profunda as gerações mais jovens da região

Cotidiano sob o cerco 

A vida na Faixa de Gaza é marcada por escassez, medo e destruição. Para Loay Okasha, nascido e criado em Jabalia — uma das áreas mais densamente povoadas do mundo, com 116 mil habitantes em apenas 1,4km² — a guerra não é uma exceção: é a regra. O campo de refugiados onde vive surgiu após a criação do Estado de Israel, em 1948, e a guerra árabe-israelense que forçou milhares de palestinos a abandonarem suas terras.

Hoje, Gaza permanece sob um bloqueio imposto por Israel, enfrentando uma prolongada crise humanitária. Cerca de 95% da água disponível é imprópria para o consumo, e a eletricidade é racionada — a média diária é de apenas oito horas. A insegurança alimentar atinge 62% da população e 80% dos moradores dependem de ajuda humanitária para sobreviver.

“Viver em Gaza é existir entre escombros, drones e bloqueios. Aqui, a morte não é uma exceção — é uma constante”, afirma a pesquisadora Isabela Agostinelli dos Santos, doutora em Relações Internacionais.

Loay descreve uma realidade em que tudo remete à guerra: o medo, as perdas, a espera. “Achava que, ao crescer, escolheria meu próprio caminho. Mas esse caminho nos foi imposto há muito tempo. O conflito não é um evento pontual — é o nosso cotidiano. Nascemos nele e tentamos viver apesar dele.”

Cidade de Loay, em caminho que ele fazia diariamente para fazer compras e trabalhar.
Cidade de Loay, em escombros após ataques
de mísseis de Israel.

As raízes desse cenário antecedem o conflito atual. Após a Primeira Guerra Mundial e a dissolução do Império Otomano, em 1922, a Palestina passou a ser administrada pelo Reino Unido. Durante o Mandato Britânico, houve um intenso fluxo migratório de judeus à região, impulsionado pelo movimento sionista — uma ideologia surgida no fim do século 19 que propunha a criação de um Estado judeu como resposta ao antissemitismo europeu.

Essa proposta, porém, ignorava a presença histórica da população árabe palestina — muçulmana e cristã — que habitava a região há séculos. Na época, uma narrativa amplamente difundida afirmava que se tratava de “uma terra sem povo para um povo sem terra” — tese desmentida por historiadores como Ilan Pappé, que demonstram que a Palestina otomana era densamente povoada, com economia ativa, estruturas sociais consolidadas e intensa produção cultural.

Em 1947, a ONU propôs duas alternativas: a criação de um Estado único, que integraria os colonos judeus, mas barraria a continuidade da colonização sionista (proposta palestina), ou a partilha do território em dois Estados — um judeu e um árabe — apoiada pelos sionistas. A escolha da ONU pela divisão foi rejeitada pelos árabes palestinos e aceita pelos líderes sionistas. O impasse levou à guerra.

Entre 1947 e 1949, cerca de 750 mil palestinos foram expulsos por milícias judaicas e, posteriormente, pelo recém-criado Exército israelense. Mais de 500 vilarejos foram destruídos e aproximadamente 15 mil pessoas morreram. O episódio ficou conhecido como Nakba — “catástrofe”, em árabe — e continua sendo uma ferida aberta na memória palestina.

Apesar de muitas vezes retratado como um conflito religioso, o embate entre Israel e Palestina é, essencialmente, político e territorial, moldado por dinâmicas coloniais e nacionalistas do século 20. Judeus viveram por séculos em países árabes, e muitos árabes também eram judeus. O que está em disputa é o controle de um território marcado por promessas não cumpridas, deslocamentos forçados e resistências históricas.

A guerra afeta profundamente o futuro da juventude em Gaza. Cerca de 92,9% das escolas foram danificadas ou destruídas. “Mesmo que alguém obtenha um diploma ou experiência, as oportunidades são escassas, e o mercado está saturado pelo desemprego. As barreiras políticas e econômicas frustram nossos sonhos e nos privam de perspectivas reais”, lamenta Loay.

A farmacêutica Lara Alijamala, de 28 anos, também nascida em Gaza, perdeu o emprego após a última ofensiva militar. “Muitas empresas nem consideram meu currículo por eu ser de Gaza”, relata. Atualmente, ela trabalha como tradutora e intérprete freelancer em hospitais, além de atuar voluntariamente no cuidado de mais de 55 crianças órfãs.

Tanto Lara quanto Loay passam os dias buscando água, garantindo alimentos e realizando tarefas domésticas que, devido à falta de energia elétrica, levam muito mais tempo. “Lavo roupa à mão e uso uma bacia grande para economizar água. Estamos totalmente sem eletricidade”, conta Lara.

Sobrinha de Loay em escombros da
cidade em que ele mora,
onde era a casa de seus amigos.
Sobrinho de Loay, em campo de refugiados em Gaza.

Enquanto Gaza vive sob bombardeios, bloqueios e insegurança, a vida em Israel segue com menos obstáculos. Shani Katz, israelense de 23 anos, nascida em Modiin — entre Tel Aviv e Jerusalém —, continua seus estudos em sociologia, antropologia e educação na Universidade de Tel Aviv e trabalha como confeiteira em uma cafeteria.

Shani serviu como guia de juventude no Exército, que é obrigatório a partir dos 18 anos em Israel — dois anos para mulheres e três para homens. Ela acredita que o serviço militar oferece oportunidades profissionais e educacionais valiosas. “Se o país precisa de gente na área de tecnologia, o exército te treina para isso. O caminho de muitos jovens gira em torno das necessidades do Estado”, afirma.

“Apesar dos problemas do governo, sinto-me protegida. Sempre vivi em uma cidade segura, mesmo durante os conflitos recentes”, diz Shani. A realidade é oposta à vivida por Lara e Loay, que convivem com a constante ameaça de morte.

Do lado israelense, a brasileira Hannah Zilberman (nome fictício), de 23 anos, também relata o impacto da guerra. Morando em Tel Aviv desde 2016, ela conta: “Não estou acostumada com bombas e sirenes. Sinto muito medo de sofrer um ataque terrorista. A guerra me deixou traumatizada.”

Segundo Hannah, Israel mudou drasticamente após o ataque de 7 de outubro de 2023. “As fotos dos reféns estão espalhadas por toda a cidade. É impossível esquecer que ainda há pessoas sofrendo”, diz ela.

Loay já considerou emigrar para buscar paz e novas oportunidades. “A vida aqui é extremamente difícil. Pensar em sair faz sentido, mas é uma escolha dolorosa. A Palestina é nossa terra — impossível de esquecer.”

A saída, no entanto, é limitada e cara. Lara relata que suas irmãs conseguiram deixar Gaza durante a intensificação da guerra, cruzando a fronteira de Rafah com o Egito. Pagaram US$ 5.000 por adulto e US$ 2.500 por criança para atravessar, por meio de uma agência egípcia que controlava a passagem.

“Antes da guerra piorar, conseguíamos estudar, encontrar amigos, assistir vídeos quando havia internet. Tínhamos uma rotina, ainda que limitada. Agora, tudo isso foi destruído”, diz Loay.

Estação de energia em campo de refugiados em gaza, onde as pessoas ligam seus telefones e eletrodomésticos necessários (torradeira, fogão elétrico e utensílios de saúde), é ligada esporadicamente.
Estação de energia carregando
computadores e celulares em Gaza.

A escassez atinge até os momentos de lazer. “Coisas simples como assistir a um filme ou ouvir música tornaram-se impossíveis. Sem eletricidade, tudo fica mais difícil”, relata. Lara complementa: “Antes ainda nos reuníamos com amigos, íamos à praia ou fazíamos piqueniques. Hoje, tudo é sobre sobreviver.”

Ela também destaca os efeitos emocionais da guerra. “Vivemos em alerta constante. Isso afeta nosso bem-estar, nossa criatividade. Às vezes, parece que nem conseguimos pensar em outra coisa.” O lazer virou um luxo em Gaza. “Mesmo pequenos momentos de distração tornaram-se distantes”, finaliza Loay.

Em contraste, em Israel, Shani continua tendo acesso à educação, internet e entretenimento. “A guerra nos afeta, mas temos infraestrutura. Posso estudar, trabalhar e ver filmes. O Exército nos prepara profissionalmente para o futuro. Aqui, a vida continua.”

Praia Borgashov, onde Shani passa para ir ao trabalho.
Shuk Hacarmel, mercado a céu aberto famoso em Tel Aviv, onde vende temperos, frutas, legumes e objetos.

Redes sociais, um campo de batalha paralelo

Enquanto em Gaza o acesso à internet é precário e marcado por bloqueios, em Israel o ambiente digital funciona como espaço de informação e, muitas vezes, de normalidade em meio ao caos.

Loay relata que, diante do bloqueio informativo imposto pela ocupação e pela destruição da infraestrutura de Gaza, as redes sociais tornaram-se sua principal forma de comunicação com o mundo. “Às vezes, não temos energia para carregar o celular, mas mesmo assim tentamos mostrar o que está acontecendo. Compartilhamos nossa dor e nossa esperança através de fotos e vídeos”, diz.

                          @okashaloay                                           @lara_gaza1                               

Para Loay, essa produção digital é uma forma de resistência cultural. Mesmo diante da censura e da instabilidade da conexão, jovens palestinos usam memes, relatos e músicas como meios de expressão. “É o que nos resta. É a forma que encontramos de continuar existindo”, afirma. Recentemente, ele conseguiu organizar uma vaquinha online para arrecadar fundos para sua família. “Tive sorte de conseguir postar a campanha antes de ficarmos sem luz de novo. Muitas pessoas ajudaram, e isso nos deu algum alívio por alguns dias”.

Lara, que também vive em Gaza, reforça que as redes sociais são um espaço para respirar. Ela destaca que, apesar da vigilância e da possibilidade de apagão digital, ainda é possível construir pontes com o mundo. “Postei um vídeo sobre os bombardeios e ele foi removido. Diziam que era conteúdo sensível, mas era apenas a nossa realidade”, conta.

Em Israel, a relação com as redes sociais é marcada por maior acesso e estabilidade. Hannah, relata que usa as plataformas para se manter informada e para aliviar a tensão da guerra. “Consigo falar com amigos, ver séries, tentar manter uma rotina. Mas também vejo muito ódio. Recebo mensagens apenas por ser israelense”, comenta.

Shani aponta que o ambiente digital é também um espaço de disputa. “As redes sociais viraram um campo ideológico. Cada lado tenta mostrar sua versão, mas nem sempre queremos ver a realidade do outro”. Ela critica o apagamento das consequências do conflito em Gaza, e reconhece que muitas narrativas reforçam apenas o medo e a autodefesa.

Tanto em Gaza quanto em Israel, os jovens apontam a desinformação como um dos maiores desafios. Em contextos de guerra, as redes sociais amplificam conteúdos sensacionalistas e dificultam a verificação de fatos. Loay observa que, sem acesso à mídia independente, é difícil saber em quem confiar. Hannah concorda: “Algumas postagens espalham mais medo do que entendimento. Fica tudo muito polarizado”.

Relatórios de organizações internacionais, como a Human Rights Watch, apontam que plataformas como Facebook e Instagram têm censurado sistematicamente conteúdos pró-palestinos. Ao mesmo tempo, jovens israelenses também relatam ataques virtuais e discursos de ódio após ações do Hamas. “A internet potencializa tudo, inclusive o medo. Já vi amigos sendo atacados online apenas por demonstrarem apoio a Israel”, diz Hannah.

A desigualdade no acesso à internet revela diferenças profundas nas rotinas dos jovens. Em Gaza, a comunicação digital é inconsistente e arriscada. “A gente arrisca muito para postar um vídeo, mas é a forma de mostrar que estamos vivos”, afirma Loay. Em Tel Aviv, o ambiente digital ainda permite espaços de lazer, distração e informação em tempo real.

Rua Rotschild, rua principal de Tel Aviv com
principais restaurantes, comércios e prédios residenciais.
Rua Dizzengoff, café que Shani passa ao caminho do trabalho.

Apesar das distâncias e desigualdades, esses jovens usam as redes sociais como ferramenta de sobrevivência, expressão e resistência. Para uns, é uma forma de gritar por socorro. Para outros, é um espaço de busca por normalidade. Em ambos os casos, é também um espelho do conflito e da tentativa de manter alguma humanidade em tempos de guerra.

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Porque ninguém deveria ter que lutar sozinho para existir.

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